Publicação de José Lopes Agulhô

OLHAR Ampliam-se os sinais da minha existência no terceiro ato. Sob a ótica da maturidade observo com atenção ao que se passa. Escuto clientes, amigos, membros da família. Tenho para hoje um ponto a refletir. Não é de todo recente, mas é renovada a queixa ou me é incômoda a sensação de quão determinante é o lado material da existência. Há algo de irracionalidade aqui: a maior parte de o tempo ser investida na operação do obter e, se possível, cada vez mais. Nós não sabemos o que virá amanhã, então, é necessário que nos preparemos para a eventualidade da falta, o que justifica todo o nosso empenho agora. Ando pela cidade, escuto pessoas e me pergunto: faz sentido? A opção urbana com sua verticalidade predial alterando o curso dos ventos e a perspectiva dos olhares e as vias horizontais de rolamento incapazes de contemplar espaços para a parada ou para o transitar. Shoppings excludentes com suas grifes e praças de alimentação, onde o verde é de plástico. Grana ou vegetal ornamental, de plástico. Os planos pessoais de clientes e amigos: quitar, em alguns anos, a dívida empresarial e, já perto dos oitenta anos de idade, não ter a quem legar o objeto pelo qual “lutou” toda a vida. Dar aos netos trinta e dois pares de sapatos e dezenas de quinquilharias. Construir uma casa de setecentos metros quadrados com anexos externos. Comprar um carro novo. Um conjunto de sofás, um lustre, um quadro para fixar estático na parede da sala de visitas vazia. Viajar na segunda e voltar na sexta durante meses, talvez anos, com outras viagens nesse intervalo. Dormir em hotéis vários. Sobreviver ao medo, ao ciúme e/ou à inveja imperativos no mundo corporativo. Produzir relatórios, estatísticas, pareceres, emails ao longo de madrugadas inclusive de sábados e domingos. Compor, negociar, tramar, aliar, contratar, distratar. Comprar terrenos, apartamentos pequenos para alugar, bois, deixar um tanto em planos de investimentos, ações das big. Participar de inúmeros eventos sociais, programas de desenvolvimento da astúcia e da sagacidade. Abrir-se ao mercado e jogar o jogo jogado. Ascender. Outro dia em Santa Luzia, eu fazia minha inspeção dos jardins e me deparei com um pequeno formigueiro que se formava. Pensei em Liz, minha netinha. - “Nó, vovô, elas tem que carregar todas essas pedras para fazer a sua casinha?”

Roda Viva | Édouard Louis | 21/10/2024

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