O significado da eleição presidencial na Argentina

O significado da eleição presidencial na Argentina

Por ampla margem, os argentinos elegeram seu novo presidente em 19 de novembro e o vencedor celebrou seu aniversário no primeiro turno, em 22 de outubro. Javier Milei, filho de um motorista de ônibus e que se define como “anarco-capitalista”, é um economista libertário que se tornou empresário de transportes, apresentador de talk-show de TV de sucesso e congressista. Milei subiu ao poder como o arquétipo do candidato antissistema, a despeito isso teve 56% dos votos, a maior porcentagem desde a transição democrática na Argentina no começo dos anos 1980, e só não venceu em três das 24 províncias.

Para galvanizar sua base, ele investiu incansavelmente contra a “casta” - políticos venais, mas também empresários corruptos que se beneficiam do capitalismo de compadrio da Argentina à revelia do resto da população. Previsivelmente, sua plataforma elenca várias medidas radicais: fechar o banco central e dolarizar a economia para obter estabilidade monetária, podar o aparato estatal para alcançar o equilíbrio fiscal, e duras ações do tipo lei & ordem para combater a escalada da criminalidade. Milei em grande medida é resultado do sentimento generalizado de que “o sistema está quebrado” e, mais especificamente, de que os partidos tradicionais não mais se importam com as pessoas comuns (Gráfico I)¹. Na América Latina esse sentimento é notadamente agudo, eis que cinco dos 10 países com as piores queixas são da região.

Obs (*): um dos cinco componentes do “Broken System Sentiment” estimado por Ipsos. Fontes: Ipsos, Maddison Project, Eurasia Group, JPMorgan Chase e Pátria Research.

Ocorre que a formidável vitória de Milei não se traduziu em maioria no Congresso. Ao contrário, seu partido Liberdade Avança tem menos de um quinto dos integrantes de ambas as Casas e construir uma coalizão governista será mais que um desafio. Ademais, a constitucionalidade das reformas radicais já tem despertado intenso debate, notadamente o abandono da moeda argentina e a eliminação do seu banco central. Consequentemente, o país provavelmente navegará por mares institucionais turbulentos no futuro previsível. Isso significa que o resto da América Latina terá a mesma sina?

Muito provavelmente não. Uma pérola de sabedoria citada amiúde na área de desenvolvimento econômico internacional provém de Simon Kuznets, Nobel de Economia, para o qual havia quatro tipos de países: subdesenvolvidos, desenvolvidos, Japão (uma nação pequena, desprovida da maioria dos recursos naturais, que sofreu derrota humilhante em uma guerra mundial e que se tornou desenvolvida apesar de tudo) e Argentina (o contrário). Depois de um turbulento processo de independência no começo dos anos 1800, essa última saltou para uma posição de potência do agronegócio no final do século, mas depois decaiu para uma condição de crescimento econômico errático no longo prazo. Em 1899 o PIB real argentino per capita estimado em dólares dos EUA era 21% maior que o do Canadá, que tem dotação natural de fatores comparável no continente e situação geopolítica similar. Em 2018 o PIB real per capita canadense era 2.4 vezes maior que seu par sul-americano (Gráfico II). Pode-se dizer que é um caso de livro-texto de falência institucional devida a reformas equivocadas e erros em série de políticas governamentais.² A maioria da América Latina, porém, vai na direção oposta. O Índice de Risco Político. Global do Eurasia Group mede estabilidade institucional, definida como a capacidade de absorver choques adversos ou crises, e a pontuação se baseia em indicadores em quatro subcategorias: governo, sociedade, segurança e economia. Nos últimos anos a evidência é de que o hiato entre o vigor das instituições na região frente às de geografias mais desenvolvidas pode estar diminuindo, e não aumentando (Gráfico III).

Neste momento os indicadores de mercado sugerem fortemente que a Argentina é um caso perdido. Seu altíssimo risco soberano sinaliza substancial probabilidade de o país entrar em default de sua dívida em breve (Gráfico IV) e um rangente Extended Fund Facility (EFF) do Fundo Monetário Internacional por 30 meses no valor de US$ 44 bilhões é o primeiro na linha de tiro. Não obstante, os investidores estão cada vez mais confiantes em uma história de desassociação no que toca ao contágio para o resto da região. De fato, os eventos de crédito nessa problemática nação sul-americana – nada menos que três episódios desde a virada do século: 2001, 2014 e 2020 – têm tido impactos cada vez menores na qualidade do crédito da América Latina.

Por conseguinte, a Argentina é tópico especial na teoria do desenvolvimento econômico, não um termômetro das tendências macroeconômicas na América Latina. Seus 20 países e 14 territórios, como em qualquer outra grande região do mundo, contêm várias realidades políticas, sociais, culturais e econômicas. O Haiti, por exemplo, é um Estado em colapso tanto quanto são a Somália e o Iêmen. Um Estado predatório, qual seja, uma elite governamental que alicia de forma corrupta ou por meio de compadrio os recursos nacionais às custas da população, caracteriza Venezuela e Nicarágua da mesma forma que Belarus e Turcomenistão. Todavia esses são os desviantes, não a mediana. A grande maioria das nações latino-americanas são democracias funcionais, com baixo risco geopolítico e modelos econômicos ocidentalizados.

Os recentes acontecimentos na Argentina podem curiosamente acabar acelerando ações que vêm a ser construtivas. Em uma era de globalização cada vez mais fraturada, nações sul-americanas e asiáticas assinaram 45 acordos de livre comércio nos últimos 10 anos. Temendo ser alijada, a União Europeia (EU) se engajou em amplas negociações para assegurar um arranjo mutuamente benéfico com o Mercosul, o bloco político-econômico cujos membros plenos são Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. Um tratado foi acordado em princípio em 2019, mas então a EU demandou compromissos ambientais adicionais, ao passo que o Brasil buscou novas concessões em temas relacionados com pequenas e médias empresas locais competindo em processos de compras governamentais, o que prolongou as negociações. O triunfo de Milei teve o efeito de, em questão de dias, tornar as discussões surpreendentemente produtivas e um acordo parece ser agora iminente.

¹ É um dos cinco componentes do “Broken System Sentiment” estimado por Ipsos em ipsos.com/broken-system-sentiment-2022.

² Para uma análise instigante sobre esse tema, ver Street, J. H. (1974) “The Ayres-Kuznets Framework and Argentine Dependency”, Journal of Economic Issues, Vol. VIII No. 4, dezembro.

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Israel Murat

Diretor de Operações - COO | Líder Estratégico em Gestão de Projetos e Processos | Empreendedor | Mentor e Palestrante

10 m

Análise interessante em um movimento que pode trazer um cenário esperançoso para investimentos na região.

XR IMÓVEIS - Rui Lopes

LinkedIn Real Estate Top Voice | Especialista em Terrenos (áreas, glebas fazendas) para Incorporação, Construção, Loteamento, Comércio de Grande Porte e Indústria | Especialista no Mercado Imobiliário e Construção Civil

10 m

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