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Regulamentação e desenvolvimento da inteligência artificial no Brasil
No primeiro dia do evento IA Fórum, especialistas analisaram como a tecnologia está sendo regulada e aplicada no cenário nacional; segurança cibernética também foi assunto do debate.
A primeira edição do IA Fórum, evento virtual promovido pela plataforma TI Inside, ocorreu entre os dias 26 e 27 de julho e contou com a participação de empresários, advogados e especialistas que pesquisam e atuam na área da inteligência artificial (IA). O primeiro dia do evento foi marcado por apresentações e discussões sobre aspectos legais e técnicos por trás do emprego dessa tecnologia no setor de negócios brasileiro.
A inteligência artificial se refere a sistemas ou máquinas capazes de simular a forma como humanos pensam a fim de realizar tarefas e tomar decisões de maneira autônoma, com base em análises de dados. As soluções de IA envolvem várias ferramentas, como algoritmos, sistemas de aprendizado, redes neurais artificiais e visão computacional.
Diferentemente dos softwares tradicionais, as soluções de IA conseguem aprender a executar o serviço a que se destinam por conta própria, sem a necessidade de intervenção humana. Devido a essa praticidade, recursos de inteligência artificial têm sido cada vez mais utilizados por empresas. Alguns exemplos de uso são os chatbots, os assistentes virtuais e mecanismos de segurança que identificam ataques cibernéticos.
Apesar de suas vantagens e potenciais, a inteligência artificial proporciona riscos, sobretudo porque depende de dados, geralmente obtidos dos usuários de sites e aplicativos, para moldar sua atuação. Isso levanta questões éticas e de privacidade, que têm levado especialistas e legisladores do mundo todo a estudar a criação de mecanismos de regulação para a tecnologia.
Como e por que regulamentar a IA
No bloco inicial do evento, participaram os especialistas Gustavo Artese, titular da Artese Advogados, Loren Spíndola, líder de políticas públicas da Microsoft e Dora Kaufman, professora do Programa de Tecnologias da Inteligência e Design Digital da PUC-SP.
Primeiramente, discutiu-se como o Brasil e outros países têm criado legislações para regulamentar o uso da inteligência artificial. Segundo Kaufman, a primeira tentativa de estabelecer princípios gerais com essa finalidade foi a resolução do Parlamento Europeu de 16 de fevereiro de 2017, que sugeriu que o emprego da IA tomasse como parâmetro as leis da robótica.
Segundo essas normas, decisões tomadas com recursos de inteligência artificial que possam impactar a vida dos seres humanos devem ser sempre fundamentadas. Além disso, a computação realizada por sistemas de IA deve ser sempre passível de compreensão para seres humanos, e robôs avançados devem ter registradas todas as operações que realizam, incluindo os passos da lógica que conduziu à elaboração de suas decisões.
Contudo, para a professora da PUC-SP, as leis em questão não se mostraram suficientes do ponto de vista legal e tecnológico: "Primeiramente, esses princípios não são universais, porque sua interpretação varia em cada país. Em segundo lugar, eles não são transformáveis em linguagem matemática para serem inseridos em modelos estatísticos." Na sequência, ela pontuou que a autorregulação por parte das próprias plataformas tampouco tem funcionado: "Diversas iniciativas de grandes plataformas de tecnologia têm sido muito mais formais do que efetivas para guiar seus desenvolvedores de sistemas de IA".
Artese, por sua vez, mencionou o Artificial Intelligence Act, proposta criada pela Comissão Europeia para atualizar as diretrizes de regulação do desenvolvimento e utilização da IA, com a finalidade de reger a atuação dos provedores de sistemas e garantir que as entidades os utilizem de maneira adequada.
Embora a proposta represente um avanço, o especialista acredita que o Brasil não deve copiá-la: "o Brasil não deveria adentrar uma aventura regulatória simplesmente emulando a legislação de países mais desenvolvidos. Precisamos ter nossa própria visão estratégica sobre IA para poder regulá-la. Não acredito que essa regulação deve ser uniforme em todos os países".
Os participantes do fórum concordaram que, apesar de a regulamentação da inteligência artificial ser um desafio, ela é extremamente necessária. "A regulação traz mais segurança jurídica, atrai investimentos ao país, além de garantir segurança para que as empresas desenvolvam e invistam na tecnologia e para que os usuários aproveitem seu potencial", enfatizou Loren Spíndola, acrescentando, em seguida, que a regulamentação demandará um esforço combinado entre os setores público e privado e a sociedade.
Os especialistas também ressaltaram que a regulação do uso da IA não deve ficar a cargo de uma única agência nacional, que ditaria as regras para cada segmento que usa a tecnologia (como saúde, educação e negócios). "É necessário ter diretrizes gerais, isto é, uma coordenação geral, mas a regulamentação e a fiscalização de fato devem ser setoriais", explicou Kaufman. "É impossível ter uma agência reguladora que abranja todos os setores econômicos. O ideal seria ter agências reguladoras específicas e devidamente capacitadas para analisar IA", complementou Spíndola.
O Projeto de Lei 21/2020
No Brasil, o Projeto de Lei (PL) 21/2020 criou o marco legal do desenvolvimento e uso da Inteligência Artificial (IA) pelo poder público, por empresas, entidades diversas e pessoas físicas. Aprovado no Plenário da Câmara dos Deputados em 2021, o texto aguarda votação do Senado Federal.
Kaufman critica o processo que culminou na elaboração do PL: "os legisladores não tiveram tempo suficiente para se familiarizar com a lógica e funcionamento dessa tecnologia complexa, nem tempo suficiente para sensibilizar a sociedade sobre a temática".
Ela menciona, ainda, a falta de embasamento técnico nas decisões dos legisladores, uma vez que não houve um amplo estudo prévio que embasasse a criação da legislação, ao contrário do que ocorreu no caso da Europa, onde a proposta de regulamentação da IA se deu após a criação de um observatório destinado a analisar extensivamente o uso da tecnologia em território europeu.
"Falta conhecimento dos legisladores sobre o que é a IA. Corremos o risco de aprovar uma proposta inócua, que não protegerá efetivamente a sociedade, ou algo que engesse o desenvolvimento da IA. Em suma, podemos aprovar uma proposta de marco regulatório com várias deficiências", opinou a professora.
Os participantes do fórum explicaram que é importante ter uma legislação nacional eficaz para regulamentar a inteligência artificial porque, cada vez mais, o brasileiro se torna um usuário intensivo dessa tecnologia. A IA encontra-se no cerne dos modelos de negócios dos principais aplicativos e plataformas usados pela população, além de ser muito utilizada pelo mercado financeiro.
"No Brasil, já vivemos a inteligência artificial. As empresas já trabalham com IA e já existem startups baseadas apenas em IA", pontuou a líder de políticas públicas da Microsoft. "Porém, nosso país costuma ficar excluído das discussões internacionais sobre IA porque não é um desenvolvedor dela. Diferentemente de outros países, o Brasil não vê o desenvolvimento econômico baseado em IA como uma agenda de Estado", acrescentou.
Desafios da implementação de IA
O segundo painel do fórum teve a participação de Alexandre Del Rey, fundador da I2AI e conselheiro da Rede de Inovação de IA e do Movimento Brasil 6.0, Bruno Ramos, fundador e CEO da HartB e Milton Stiilpen, diretor de pesquisa e inovação na Take Blip.
Os participantes constataram que o baixo desenvolvimento de soluções de IA no contexto nacional é resultado da baixa capacitação e formação de profissionais da área. Ramos explicou que esse tipo de mão de obra qualificada é reduzida porque, além das falhas na educação, os poucos profissionais realmente capacitados muitas vezes migram do país para trabalhar em empresas estrangeiras.
A falta de formação frequentemente se estende ao mundo dos negócios. "Capacitação não significa apenas ter programadores que desenvolvam a tecnologia: é ter profissionais do setor de negócios que entendam o potencial de aplicação da IA. É ter diretores, líderes, gerentes que conheçam o mínimo da tecnologia", comentou Del Rey.
Nesse sentido, Ramos afirmou que um erro comum das empresas é não ter clareza do objetivo que se busca a partir da inteligência artificial: "é preciso saber o que se quer fazer com a ferramenta e onde usá-la. Por exemplo, se é para empregá-la em um processo de venda, se é para sanar uma dor da operação ou para rentabilizar melhor o negócio". Ele comentou, ainda, que o próprio fornecedor da tecnologia pode ajudar os executivos a entendê-la melhor.
Os participantes também sugeriram que uma alternativa para potencializar a criação de soluções de IA no país seria a parceria entre instituições de ensino e o setor privado, tal qual acontece nos Estados Unidos.
IA e segurança cibernética
No último painel do evento, falaram os especialistas Tonimar Dal Aba, gerente técnico da ManageEngine, José Pela Neto, líder para as soluções de cyber transformation na Deloitte Brasil e Antonio Gesteira, diretor administrativo sênior da FTI Consulting.
Os painelistas discutiram como a inteligência artificial pode ser aplicada para fins de segurança. "A IA facilita a detecção acelerada de ameaças, bem como a contenção e a resposta a eventos, colocando a segurança das organizações em um modo proativo e potencializando o papel dos analistas", disse Neto.
Segundo o especialista, essas ações são possíveis graças aos diferenciais da tecnologia: "o que torna a IA uma arma poderosa contra ameaças à segurança dos negócios é sua capacidade de análise rápida de dados, processamento de eventos, aprendizado de comportamento, detecção de anomalias e inteligência preditiva".
Ou seja, as ferramentas de segurança baseadas em IA podem, por meio da análise de dados, aprender, antecipar e combater ameaças em tempo real. Por essa razão, os dados são elementos cruciais para o funcionamento desses sistemas. "É necessário ter um framework para conectar o sistema aos dados. Precisamos saber quais ferramentas de IA serão usadas para explorar o dado e como ele será revisado e reportado", constatou Gesteira.