Reformatório Krenak: marco da violência histórica contra povos indígenas
“A prática da violência política gera um conjunto de prejuízos individuais e coletivos” (Martín-Baró, 1984)
Entre 1969 e 1972 o Brasil viveu um de seus episódios mais emblemáticos, um de nossos campos de concentração para indígenas, conhecido como Reformatório Krenak.
Crianças, mulheres grávidas, homens e anciãos foram brutalmente torturados e assassinados por militares na Ditadura. As violações dos direitos vão desde expulsão de seus territórios, esfolamento com cavalo, chicotada, espancamento e tronco - sim, tronco. Além disso, era proibido falar a língua materna, praticar rituais ou simplesmente existir.
O sagrado deturpado
O reformatório Krenak foi uma espécie de cadeia ilegal, inicialmente instaurada no município Governador Valadares há 140km dos Sete Salões, território sagrado Krenak. Com ações não-oficiais, criadas sob alegação de prevenção a crimes cometidos por pessoas indígenas, acumulou corpos originários sob justificativas como vadiagem, alcoolismo, pederastia, desacato e agressão. Um reformatório que não reformava.
Acabou se tornando um centro de detenção com penas de trabalho escravo para indígenas de diversas regiões do Brasil: Karajá, Terena, Maxacali, Pataxó, Kadiwéu, Xerente, Kaiowá, Bororo, Krahô, Guarani, Pankararu, Guajajara, Canela, Fulni-ô, Kaingang, Urubu, Campa, Xavante, Xakriabá, Tupinikim, Sateré-Mawé, Javaé e outros. Destes, 80% não tinham nenhum documento pessoal nem sequer a causa da prisão documentada.
Qual o real tamanho do impacto? Quantos morreram sem registros? Quantas histórias foram silenciadas?
São perguntas feitas ainda hoje, mas que, provavelmente, jamais terão respostas concretas devido ao acordo desonesto entre o Estado através do AI-5, governo de Minas Gerais e Polícia Militar de Minas Gerais, que forjaram um dos episódios mais lastimáveis de nossa história.
Os registros fotográficos mais impactantes são de famílias Krenak com aspecto de retirantes, como no quadro de Portinari;
Outra, de um suposto prisioneiro pendurado num pau de arara (técnica de tortura) num desfile cívico com a presença de José Maria Alkmin, o Secretário de Educação do Estado de Minas Gerais; Israel Pinheiro, o Governador do estado; o General Costa Cavalcanti, Ministro do Interior; e o Capitão da PM, Manoel Santos Pinheiro, responsável pelo reformatório e réu de denúncias que vão desde maus tratos à violência sexual; outra imagem espantosa é da Guarda Rural Indígena, formada por pessoas indígenas de diversas etnias, treinadas para repressão de outras pessoas indígenas - remontando ao conceito de “capitães do mato”, amplamente utilizados nos séculos anteriores contra pessoas negras e indígenas.
Não suficiente, o Reformatório Krenak saiu de Governador Valadares e os indígenas supostamente criminalizados foram conduzidos à força pelas estradas ou em vagões de carga de minério até a fazenda Guarani, que a sucedeu.
Novas terras, antigas violências.
A área onde funcionou o Reformatório Krenak foi doada pelo estado de Minas à União e envolvido em permuta com a fazenda Guarani, onde os crimes seguiram acontecendo e entulhando pessoas indígenas em condições de inanição física e cultural, em situação de trabalho escravo e violências sistemáticas. Toda produção agrícola, fruto desse trabalho desumano, pertencia ao capitão da Polícia Militar de Minas Gerais, Manoel Santos Pinheiro.
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Genocídio, escravização, perseguição e diáspora. Crimes profundos. Violações graves dos direitos humanos pouco investigados e quase nada punidos. Quando Munanga afirma que o racismo é um crime quase perfeito, ele é assertivo.
"O que é mais escandaloso é que 50 anos se passaram e estas pessoas não tiveram nenhum apoio psicológico. Elas perderam a lucidez, vivem deprimidas, mudaram seu comportamento. A memória da tortura é muito presente entre o nosso povo", (Ailton Krenak, em entrevista ao G1)
Somente em 1997, os Krenak conseguiram retomar parte de seu território e em 2011 foi instituída a Lei nº 12.528, da Comissão Nacional da Verdade, que expôs esse e outros crimes cometidos pelo Estado brasileiro e colocou documentos antes sigilosos à disposição da sociedade. Crimes que foram omitidos, direitos negligenciados e traumas silenciados por décadas.
Em 2015, um ano controverso.
Em 05 de Novembro o rompimento da barragem de Mariana pela extração de minério de ferro comprometeu a potabilidade do Rio Doce, Watu (avô), espírito sagrado para os Krenak, violentando mais uma vez sua existência física e cultural.
E em 16 de Dezembro, com os holofotes voltados para a omissão histórica, a 14ª Vara Federal de Minas Gerais, no processo 0064483-95.2015.4.01.3800, julgou a União, o Estado de Minas Gerais, a FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), o Ministério Público Federal (MPF) e o capitão da Polícia Militar Manoel dos Santos Pinheiro pelas violações aos direitos dos povos indígenas, em especial os Krenak.
O argumento da decisão é de que o Reformatório foi uma estratégia para facilitar a invasão de posseiros, fazendeiros, políticos, banqueiros, empresários, ruralistas e garimpeiros que tinham interesse na riqueza das terras que os Krenak ocupavam, sobretudo de nióbio, material base para produção de aço.
O garimpo na região do rio Doce financiou, historicamente, o genocídio Krenak.
E o futuro dos Krenak?
Desde abril de 2023 o território Sete Salões , origem sociocultural dos Krenak, aguarda avanço sobre a demarcação (foi somente identificado até agora), coordenada pela Funai em determinação pelo governo do estado pelas violações durante a Ditadura Militar.
Esse é um caso alarmante de racismo institucional e ambiental.
Primeiro, quando a decisão política ignora o processo histórico. Os Krenak não estavam no território dos Sete Salões em 1988 porque foram arrancados de lá - e é por isso que a Lei do Marco Temporal tem sido apontada como inconstitucional e impede a reparação histórica aos povos indígenas.
Segundo, quando um desastre ambiental atinge a população local e os mais afetados têm raça e etnia bastante definida, nisso reside o conceito de racismo ambiental.
O caso do povo Krenak retrata a importância da Demarcação de Terras Indígenas como um direito pela existência, violado por ações coordenadas de um racismo estrutural.
Raça e Natureza
Pode parecer absurdo, mas violações aos direitos de pessoas indígenas seguem, como no Reformatório Krenak. Apesar da Convenção para prevenção e repressão do crime de Genocídio da ONU (1948), do Decreto 30.822/52, da OIT 169 (1989) e o Estatuto de Roma (1998), o morticínio sistemático negro e indígena segue indecentemente. Basta observar relatórios de entidades como APIB, COIAB e CIMI sobre os Ianomami, Huni Kuin, Tembé e outros povos, que ocorrem principalmente em territórios onde o conflito por terra parece não ter fim. Indígenas, quilombolas e povos tradicionais morrem todos os dias defendendo as mesmas pautas.
O dia 20 de Janeiro vem sendo ressignificado como o Dia da Consciência Indígena. Como o 20 de Novembro, convida a sociedade à reflexão ao colocarmos determinadas pautas no centro da discussão. Em menos de 24 horas de rememorações duas lideranças Pataxó foram baleadas por fazendeiros da região no Sul da Bahia. O cacique Nailton Pataxó foi gravemente ferido e a cacica Nega Pataxó foi assassinada.
Nós, de alguma forma, somos a própria terra.
Esse episódio brutal (que não é isolado e muito menos incomum) revela a existência de um sistema nada sutil, longevo e profundamente violento criado e mantido com um objetivo muito explícito: o extermínio não só dos povos originários, mas também do apagamento de qualquer vestígio da suas comunidades, existências, culturas, suas lutas e seus saberes ancestrais. O mesmo sistema que garantiu a criação do reformatório Krenak e sua manutenção, ora agindo, ora se omitindo.
Por outro lado, na 1ª Cúpula Judicial Ambiental (realizada entre os dias 4 e 5 de agosto de 2023), que reuniu líderes da sociedade para debater desafios e soluções na preservação da Amazônia, a deputada Joenia Wapichana lembrou que, apesar das violações históricas sofridas pelos povos originários, as terras indígenas ainda são as áreas mais preservadas.
Enquanto sociedade, precisamos refletir sobre qual modelo de mundo queremos ser e como contribuir para a existência das gerações que estão por vir. Esse é nosso desafio contemporâneo. Isso transpassa pela forma como encaramos as pessoas indígenas, seus direitos e seus saberes ancestrais, que nos provocam insistentemente que a luta pelas questões ambientais são agora e de todas as pessoas.
Fontes bibliográficas
Analista de Ações Afirmativas do ID_BR
12 mVocê conhece esse episódio? Só posso agradecer ao ID_BR - Instituto Identidades do Brasil por colocar na mesa e agradecer a excelência e afetuosidade de Laura Queiroga e Drew Fischer