Press and Planet in Danger

História

A imprensa e o planeta em perigo: repórteres ambientais à beira das crises climáticas

Por ocasião do lançamento do resumo “Press and planet in danger: safety of environmental journalists; trends, challenges and recommendations” (A imprensa e o planeta em perigo: segurança dos jornalistas ambientais – tendências, desafios e recomendações), em inglês, as histórias seguintes foram compiladas, juntamente com números e tendências.

Na manhã do dia 8 de fevereiro de 2023, no coração da Amazônia, policiais militares interceptaram o repórter investigativo Bram Ebus e sua equipe de dois profisionais em um local às margens do Rio Puruê. Nos dois dias anteriores, os três jornalistas haviam navegado de um local de garimpo para outro, documentando a indústria multimilionária de mineração ilegal de ouro e o papel da aplicação da lei nessa atividade. 

O chefe dos policiais exigiu que eles mostrassem o material que haviam coletado. Ele sabia que o cinegrafista Andrés Cardona e o fotógrafo Alex Rufino estavam tirando fotos e filmando. Tudo o que está acontecendo aqui é ilegal, o policial advertiu à equipe, em tom ameaçador. Na opinião dele, os garimpeiros eram ingênuos e falavam livremente, sem entender as implicações de ter jornalistas na região. 

Na tentativa de acalmar a situação, Bram concordou. Um segundo policial, com o rosto coberto por uma balaclava e brandindo uma arma automática, examinou o material. Os policiais  obrigaram a equipe a apagar as fotos e as filmagens. Qualquer coisa pode acontecer aqui, o chefe havia ameaçado Bram e a equipe momentos antes, e eu posso fazer o que quiser. Não satisfeitos em apenas apagar o material, os policiais também confiscaram os cartões de memória, retornaram ao barco deles e partiram. 

Ao mesmo tempo, a milhares de quilômetros de distância, no Rio Zezë, no sudeste da Europa, a repórter investigativa Antela Lika e sua equipe enfrentaram um ataque semelhante. Enquanto documentavam a mineração ilegal de cascalho, o drone que usavam foi abatido por um homem local que trabalhava na draga. Ao confrontar a jornalista e a equipe, sob a mira de uma arma, o homem gritou: Este rio é nosso. Enquanto Antela tentava negociar uma saída, outro homem mascarado, também armado, golpeou outro membro da equipe, retirando à força a câmera de suas mãos e quebrando-a no chão. 

Por que vocês vieram aqui? Pessoas foram mortas neste rio, não sabiam?”, disseram os homens em tom de ameaça a Antela e equipe. Após meia hora de tensão e pedidos sem sucesso de uma intervenção policial, a equipe de reportagem escapou por pouco. 

Além de terem ocorrido simultaneamente, esses dois incidentes destacam alguns dos riscos associados à cobertura de questões ambientais, ou seja, reportagens realizadas em locais remotos, a sobreposição de questões ambientais com atividades econômicas lícitas e ilícitas, uma complexa rede de atores – ilegais e legais, privados e patrocinados pelo Estado – e sua disposição de recorrer à violência para proteger seus interesses econômicos. Nesse sentido, os dois casos exemplificam questões mais generais que afetam os jornalistas que cobrem o meio ambiente em âmbito mundial. 

A seguir, você conhecerá outras histórias que mostram os riscos que os jornalistas encaram na linha de frente, quando tentam reportar sobre questões ambientais, muitas vezes enfrentando ameaças e ataques e, no pior dos cenários, a morte, simplesmente por realizarem seu trabalho de compartilhar a verdade. 

Press and Planet in Danger

Jornalismo indígena e conflitos sociais na América Latina

Apesar de terem ocorrido com três anos de diferença, os assassinatos dos jornalistas indígenas Maria Efigenia Vásquez Astudillo e José Abelardo Liz têm semelhanças impressionantes. 

Vásquez, uma jornalista de 31 anos do povo Kokonuco, trabalhava em uma estação de rádio comunitária que apresentava notícias e programas de variedades em uma área remota da América Latina. Por mais de uma década, ela levou as notícias para as cerca de 6,5 mil pessoas que constituem seu povo. Em outubro de 2017, enquanto cobria o protesto dos Kokonuco contra terras de propriedade histórica que haviam sido privatizadas, a polícia de choque entrou em confronto com os manifestantes e Maria Efigenia foi atingida no peito por um projétil desconhecido. Ela morreria mais tarde no hospital. 

Em agosto de 2020, José Abelardo Liz, um jornalista do povo Nasa, teve um destino semelhante. Ele tinha 34 anos e estava filmando uma incursão militar em um acampamento de anos mantido pelos Nasa em terras que eles reivindicavam como suas, mas que oficialmente pertenciam a uma empresa de cana-de-açúcar. José foi baleado durante o violento confronto que se seguiu. Sua câmera captou sua voz angustiada: “Eles me acertaram! Eles me acertaram!” Depois de cair, ele passou a câmera para um colega continuar filmando. José Abelardo morreu a caminho do hospital. 

Um departamento rico em recursos, Cauca é o pano de fundo de atividades econômicas que fazem uso intensivo de terra. Mineradores, pecuaristas, agricultores e madeireiros, legais e ilegais, uma alta presença de grupos criminosos armados e dezenas de grupos indígenas sem-terra fazem da propriedade agrária uma questão controversa na área. Como a mídia tradicional geralmente ignora a região, os meios de comunicação comunitários e indígenas atuam como os únicos órgãos de controle da região, de acordo com a Fundación para la Libertad de Prensa (FLIP). 

As mortes de Maria Efigenia e José Abelardo ainda estão sendo investigadas. Um policial é objeto de uma investigação disciplinar interna relacionada à morte de Maria Efigenia. Quanto a José, a principal hipótese é que o exército tenha disparado o tiro que o matou, mas nenhuma acusação foi apresentada até abril de 2024, de acordo com a equipe jurídica da FLIP que representa o caso. 

“Escreva sobre a apropriação de terras na África e você será processado”

Quando Agnes Rousseaux e dois de seus colegas da revista investigativa francesa “Basta!” foram processados por difamação por um conglomerado internacional privado por cobrirem questões relativas à apropriação de terras na África Ocidental, ela sabia que não eram os primeiros. No entanto, ela não podia imaginar o quão combativo seria o autor da denúncia. 

Na batalha legal de cinco anos que se seguiu, os advogados do conglomerado recorreram, sem sucesso, de dois veredictos que confirmaram as reportagens da “Basta!” Eles também processaram a revista por causa de um segundo artigo que discutia a questão da grilagem de terras, moveram outro processo contra outro veículo de notícias por se referir ao artigo original da “Basta!” em seu boletim informativo e processaram três outros repórteres e blogueiros que comentaram o artigo online. Um dos blogueiros, um professor aposentado, manifestou sua confusão quando se viu em um tribunal de Paris cercado por jornalistas. “Eu não fiz nada. Apenas li o artigo”, Agnes se recorda de ele ter dito. 

De 2009 a 2019, o conglomerado apresentou processos por difamação contra pelo menos 28 jornalistas e veículos de comunicação que cobriam disputas de terras e suas atividades na África. “Se você é o primeiro jornalista ou veículo de mídia processado, você fica assustado. Mas quando são 20, 30, 40 pessoas, você entende que o problema não é você. A empresa é o problema”, disse Agnes. 

Felizmente para a “Basta!”, um veículo pequeno, seus leitores realizaram doações para custear as despesas legais acumuladas durante os anos de litígio. Agnes e os outros jornalistas afetados se uniram em campanhas públicas para conscientizar sobre o impacto negativo das ações judiciais que impõem o silêncio. Eles também defenderam mudanças legais e políticas para impedir a próxima onda de processos. “Mas nenhuma lei ou instituição realmente mudou, apenas a percepção pública do problema”, acrescentou Agnes. “E não sei o que poderia acontecer no próximo caso. Teremos que iniciar a luta do zero novamente, pois aumentar a conscientização pública leva tempo”. 

Os extremos climáticos colocam todos em risco, inclusive aqueles que os cobrem

O aumento das temperaturas globais levou a condições climáticas extremas mais frequentes e mais severas. As mídias de notícias estão cobrindo essas histórias com mais frequência, às vezes com equipes que produzem notícias de última hora ao vivo, informando sobre ondas de calor, incêndios florestais, inundações, furacões e secas nos próprios locais. Essas tarefas expõem os jornalistas a riscos significativos: chegar ou sair das áreas afetadas pode ser difícil, a natureza desses eventos é volátil e, muitas vezes, os repórteres não têm treinamento ou equipamentos de proteção. 

Esses riscos têm sido fatais. Nas enchentes ocorridas no Paquistão em 2010, por exemplo, centenas de jornalistas tiveram suas casas levadas pelas enchentes, e a repórter Asma Anwar morreu durante uma missão na província de Khyber Pakhtunkhwa. Da mesma forma, três jornalistas indianos perderam a vida ao fazer reportagens sobre enchentes catastróficas: o fotojornalista Shafat Sidiq, em setembro de 2014, durante uma missão em uma área inundada no Vale da Caxemira, e K.K. Saji e Bibin Babu, em julho de 2018, quando seu barco virou ao voltarem de uma entrevista com vítimas das enchentes que haviam se mudado para um abrigo. 

Desmatamento das florestas do Sudeste Asiático

Enquanto as taxas globais de desmatamento diminuíram recentemente, as florestas tropicais biodiversas do Sudeste Asiático continuam a enfrentar ameaças significativas devido à exploração ilegal de madeira e à expansão de plantações de óleo de palma. Nos últimos 15 anos, pelo menos 34 jornalistas que investigavam esses problemas e, em alguns casos, registravam o papel das autoridades locais, foram ameaçados e agredidos. Além disso, sete jornalistas foram mortos: Maraden Sianipar, Maratua Siregar, Desidario Camangyan, Ardiansyah Matra'is, Hang Serei Oudom, Taing Try e Soe Moe Tun. 

Um oitavo jornalista, Muhammad Yusuf, morreu na prisão em circunstâncias não esclarecidas enquanto aguardava julgamento em um caso de difamação. Entre novembro de 2017 e março de 2018, ele escreveu várias vezes sobre as dificuldades enfrentadas por pequenos agricultores que haviam perdido terras e lavouras para uma empresa de óleo de palma em expansão, em Pulau Laut, uma pequena ilha na costa de Bornéu, segundo a Mongabay, um veículo de notícias ambientais. Em março de 2018, após uma queixa de uma empresa de óleo de palma, Muhammad foi preso e acusado de difamação e discurso de ódio. Ele morreu na prisão alguns meses depois, enquanto aguardava julgamento. 

O jornalismo como ferramenta para defender direitos à terra e à água

Na América Latina, a terra em nome de santos católicos não impede que corporações e empreendedores imobiliários assumam o controle. 

Vamos tomar como exemplo Santa Maria da Assunção, “dona” de uma propriedade de 6 milhões de dólares e 27mil metros quadrados. “Bem, Santa Maria não é realmente dona da terra”, esclarece Miryam Vargas, uma radialista indígena. “É a minha nação, o povo Cholulteca, que a possui centenas de anos. Mas as nossas terras comunitárias estão registradas sob o nome dos santos que veneramos, então Santa Maria, São Tiago ou São Diego de Alcalá são os proprietários legais da terra”. 

Anos atrás, por meio de uma suposta rede de compradores fictícios e registros de propriedades falsificados, a terra foi tirada dos Cholulteca e agora está registrada em nome de pessoas físicas. 

Assim como esta, nos últimos cinco anos Miryam cobriu muitas disputas entre grupos indígenas e poderosas corporações no estado de Puebla. “Ações de comunicação”, como ela as chama. Ou seja, reportagens ao vivo de protestos e outras ações realizadas para defender os recursos hídricos e agrários da comunidade. Suas reportagens não apenas informam o público sobre questões ambientais como a superexploração de água, ela disse, mas também servem como um empecilho para potenciais ataques contra o seu povo. Isso é algo que ela conhece muito bem. 

Em pelo menos três ocasiões, indivíduos não identificados invadiram a casa de Miryam e os escritórios da Rádio Cholollan, roubando documentos com base nos quais ela produzia suas reportagens, além de outros objetos de valor. Uma vez, os agressores deixaram uma faca em sua cama. Entre 2021 e 2022, em várias ocasiões ela foi perseguida e ameaçada por indivíduos associados a empreendedores imobiliários. Policiais também a agrediram fisicamente quando ela registrava ao vivo um protesto, em junho de 2021, contra empresas acusadas de perfuração e superexploração ilegais de água. 

Miryam denuncia o efeito intimidador de todos esses ataques. “Penso nos riscos deste trabalho, nos ataques que sofri, nas situações complexas que enfrentamos, e temo o que poderia ocorrer na próxima missão”, disse ela. “Mas a dignidade da minha comunidade e a defesa das nossas terras valem a pena”. 

“Desapareça, [***]. Deixe o meio ambiente ser explorado, é para isso que ele serve. Tenha cuidado para não ficar se lamentando por nada”

Um tweet postado tarde da noite foi o primeiro de uma série de ameaças de morte e episódios de assédio que acabariam por forçar Maria Lourdes Zimmerman e Alberto Castaño a fugirem do seu país de origem e procurarem refúgio no exterior. 

Durante anos, o casal divulgou investigações incisivas no rádio, lançando luz sobre o impacto ambiental do desenvolvimento patrocinado pelo governo na Colômbia. Seu jornalismo investigativo, por exemplo, levou à suspensão da construção de um porto que ameaçava o ecossistema de manguezais e a uma medida temporária contra uma grande represa que violava as salvaguardas ambientais. 

“Quando você cobre o meio ambiente – não apenas para dizer o quão bonito ele é e tal, mas quando você aponta o dano ambiental e seu impacto nas comunidades locais, é quando você se torna um problema”, disse Alberto. “E nós nos tornamos um incômodo para os atores econômicos poderosos”. 

Apesar das ameaças contínuas e do assédio, o casal colombiano continuou realizando seu trabalho investigativo. Quando os donos da estação de rádio encerraram abruptamente seu programa, eles transferiram suas investigações para seu próprio website. Mas em fevereiro de 2018, após publicarem uma investigação sobre os assassinatos de ativistas ambientais e a questão do desmatamento nas florestas tropicais da Colômbia, seu site foi hackeado e as ameaças de morte aumentaram. Durante dias, homens não identificados os seguiram, exibindo armas em público. Em uma parada de trânsito, um homem em um moto se aproximou de Alberto e disse-lhe “Como vai ser, [****]? Continue a reclamar e nós vamos atirar em você”. 

Após três meses, o casal fugiu do país e foi para o Canadá. Porém, mesmo quando estavam no exterior, as ameaças continuaram e não se deu continuidade à investigação na Colômbia. 

Atualmente trabalhando como motorista de ônibus escolar, Alberto tenta publicar artigos de vez em quando, apenas para manter vivo o site de notícias. Com medo das consequências do jornalismo investigativo e incapaz de reportar nos locais de interesse, ele se vê escrevendo artigos no formato de listas. “Os animais mais venenosos ou os tubarões mais letais. Apenas click-bait, é a isso que o nosso jornalismo foi reduzido”, disse ele. 

Maria Lourdes, que ganhou um prêmio nacional de jornalismo em 2016, está aprendendo inglês e recentemente encontrou um emprego em uma loja de animais de estimação. A loja tem uma seção de animais originários de florestas tropicais, aonde ela vai para encontrar algum consolo. “Estando lá, eu consigo me sentir mais próxima do meu país, dos lugares sobre os quais escrevi tantas vezes”. 

Avaliações de risco e protocolos de segurança. Uma experiência sul-americana

O assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira, ocorrido na Amazônia em junho de 2022, causou uma onda de choque na comunidade de jornalistas ambientais no Brasil e no resto do mundo. 

Karla Mendes, uma repórter brasileira da Mongabay, disse que a tragédia serviu como um lembrete sombrio dos perigos que os jornalistas enfrentam, levando a uma reavaliação mais ampla dos protocolos de segurança dentro da comunidade jornalística. Ela mesma adotou medidas de segurança mais rigorosas, como portar um rastreador via satélite e conduzir avaliações de risco mais detalhadas antes de suas missões em campo. 

Katia Brasil, editora da Amazônia Real, compartilhou que a agência de notícias implementou protocolos de segurança abrangentes para proteger seus jornalistas, especialmente em ambientes de alto risco. Esses protocolos incluem rigorosas restrições de viagem a fim de evitar deslocamentos noturnos, diretrizes estritas de comunicação (exigência de check-ins periódicos e notificação prévia em áreas sem cobertura telefônica). Segundo Katia, os jornalistas da Amazônia Real também recebem seguro saúde e de acidentes – algo que muitos dos jornalistas entrevistados ao redor do mundo disseram não possuir. 

Para Luís Indriunas, editor do De Olho nos Ruralistas, um veículo digital de investigação com foco na indústria pecuária e seus impactos no meio ambiente e na política brasileiros, o sucesso dos protocolos de segurança está em contar com as contribuições de organizações e movimentos sociais especializados no contexto local. Ele diz que essa abordagem fornece orientações aos jornalistas sobre onde ir, com quem falar e locais a serem evitados por motivos de segurança. 

Bram Ebus, que foi atacado em fevereiro de 2023 enquanto realizava uma reportagem na Amazônia, enfatiza os protocolos de segurança elaborados especificamente para os desafios da região. Por exemplo, em algumas partes da Amazônia, o transporte é feito principalmente por meio dos rios, o que apresenta riscos particulares e restrições logísticas. Ele informou que seu protocolo de segurança inclui um planejamento detalhado que leva em conta as limitações geográficas e infraestruturais, como longas distâncias de viagens de barco e rotas de fuga limitadas. Ecoando os comentários de Karla Mendes sobre monitoramento e rastreamento, Bram Ebus também leva consigo dispositivos de monitoramento em tempo real que funcionam em áreas remotas. 

Press and planet in danger
UNESCO
2024
Safety of environmental journalists; trends, challenges and recommendations
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